quinta-feira, 1 de abril de 2010
A MINHA SALA DE AULA
A MINHA SALA DE AULA
Sou professora do ensino secundário desde 1982, há 13 anos que dinamizo cursos e oficinas de formação contínua para docentes na área da expressão corporal, e há 7 que desenvolvo o meu programa de doutoramento no campo da psicopedagogia. E porque digo isto? Para que sintam que também eu vivo o que estudo e ensino. Acredito que o professor tem de sentir-se bem na sua pele, para que o aluno se sinta bem na sua pele e, na esperança de encontrar realidades que formassem o corpo e a alma dos alunos, a partir de corpos e almas docentes mais conscientes, visitei várias salas de aula em diferentes continentes.
Percebi que há problemáticas e anseios comuns. Que dentro de cada sala de aula, assim como dentro de cada aluno e cada professor, existe um potencial gigantesco por explorar, e que todos os requintes tecnológicos, toda a riqueza de materiais, não nos transporta per si para a sala de aula ideal, nem nos devolve a força vital de sermos felizes e educados. Porventura, é na conquista das nossas potencialidades criadoras, do nosso espaço de criação, que subjaz a riqueza da nossa identidade. A qualidade de vida elege a dimensão do ser em detrimento da dimensão do ter. É preciso trabalhar e recriar continuadamente a sala de aula, com o cuidado e a qualidade que devemos ter para com o nosso espaço de ser.
A sala interior de cada um
Quando se pronunciam as palavras “sala de aula”, reporto-me imediatamente a Durkheim (1971) quando afirma ser importante o trabalho sobre a sala de aula interior de cada um, onde por vezes se encontram turmas muito indisciplinadas. Como lidar com alunos indisciplinados, se não acedermos às nossas vozes internas ensurdecedoras que por vezes nos assaltam? Nesta sequência, é lícito perguntar: este artigo dirige-se especificamente a professores e alunos ou a qualquer pessoa? Afinal todos somos, ao longo da vida, educadores e educandos, formadores e formandos, todos temos, à semelhança de um professor, problemas relacionais, turmas indisciplinadas para compreender e gerir, “eus” para motivar, para negociar, para fazer evoluir. Todos temos um professor e um aluno interiormente, em constante relação. O caminho começa indubitavelmente pela interioridade do ser. O famigerado caminho do autoconhecimento.
Na sala de aula a relação amplia-se. Num quadrado, ou num rectângulo, alunos e professores enfrentam-se, em permanente confronto consigo próprios, pelo menos durante um ano lectivo. Talvez por isso, a sala de aula tem tido sempre um cunho misterioso. Tal como o interior humano, ela é um espaço de sombra e de luz, onde repousam infinitas potencialidades criativas. Um espaço tão rico que às vezes até me ponho a pensar: se puséssemos as salas de aula do mundo a comunicarem e expressarem as suas infinitas vivências... provavelmente reconheceríamos a história da humanidade.
Representações expressivas de salas de aula
Hoje, algumas salas de aula são rectângulos esbranquiçados, com cadeiras e mesas envelhecidas pelos corpos ansiosos que nelas permanecem. Outras já apresentam o aparato tecnológico dos quadros interactivos, que dentro em pouco revestirão a grande maioria das salas de aulas, introduzindo um elemento inovador. Mas será que a relação pedagógica se optimizará? Será que os problemas recorrentes em sala de aula, como a imobilidade do corpo dos alunos, a predisposição para a ausência de afectos em detrimento da (o)pressão cognitiva, alguns factores de incomunicabilidade entre professores e alunos, se solucionarão com as propostas da virtualidade?
Às vezes as salas de aula tornam-se em salas de isolamento, outras vezes em espaços amplos de descoberta. Ora aridez, ora fertilidade. Ora repressão, ora expansão. Eis a dualidade em que o interior humano se encontra e se dissemina.
Algures no tempo recente, tive a oportunidade de trabalhar a sala de aula em representação psicodramática. O grupo presente, contando com alguns professores e alunos, foi convidado a expressar-se enquanto cadeira da frente, cadeira do fundo, secretária do professor, chão da sala, recipiente do lixo, porta, janelas, alunos, professor, giz, apagador, quadro. Havia papéis para todos. Fui porta, com um pedaço de papel encravado na fechadura, senti-me riscada; que alívio quando chegou a vez de me expressar e emocionada consegui libertar-me do impedimento do papel asfixiador. Depois desforrei-me da falta de expressão da porta e troquei papéis com o giz. Mas a grande surpresa foi a descoberta que, naquela sala de aula, a vida estava mesmo no recipiente do lixo. O colega, que representava ser o lixo atirado para um balde, mostrou-nos a sua riqueza. Aí estavam atirados resquícios de vida, poemas amarrotados entre latas de Coca-Cola, mensagens proibidas entre embalagens, cábulas, o último bolicao ainda mordido à pressa, uma garrafa com histórias para contar… dar voz ao lixo deixou o grupo perplexo. Fragmentos de vida que pareciam inexpressivos mas tinham uma intensidade vivificante… só comparável ao tapete do chão pisado, humilhado, sem atenção dos presentes.
Os corpos dos alunos queixaram-se do cansaço de estarem tantas horas sentados. Muitos queriam a janela para se espreitarem no mundo; as cadeiras do fundo, marginais, algumas coxas, sem equilíbrio. Muitos lamentos, muitos gritos incontidos, nos vários elementos que compunham a sala de aula, em representação. Fomos trocando de papéis até que, no fim da sessão, recriámos, corporalmente, cenários ideais de sala de aula. Criaram-se salas de aula “ex-pressivas”, livres das pressões habituais. Perguntaríamos agora ao leitor, como seria a sua sala de aula ideal? Como veria o seu corpo nessa sala? Que pensamentos e emoções teria? Que representação teria de si, enquanto professor e enquanto aluno?
Não há modelos de sala de aula ideais, por mais sedutor que pareça aprisionar o conhecimento a formas hirtas para finalidades repetitivas. Não acredito em receituários, porque a sala de aula exige uma atenção apurada no “aqui e no agora” para a diversidade de desafios e de respostas que permite…a sala de aula constitui um laboratório vivo de construção de identidades, em permanente formação e mutação.
A minha sala de aula
Entro na sala de aula, olho-me ao espelho. Os alunos são vários reflexos de mim própria. Tenho que resistir à tentação de negar alguns ângulos de mim. Entro na sala, com outros corpos numa versatilidade e diversidade de movimentos. Cabe-me torná-los conscientes de si e de mim. Entro na sala de aula, tenho de resistir a fazer a chamada, ditar o sumário, escrever no quadro o que julgo ser a minha mensagem para hoje. Manter o professor acomodado ao verbo e o aluno acostado à inércia desse verbo, não é mais possível. Retiro-me de mim, desse eu que gosta de dominar pela exuberância da sua palavra, de se acomodar aos ritmos conhecidos, aos mesmos passos, aos olhares viciados pelas percepções e impressões já instaladas em mim e nos outros. Entro na sala de aula, aceito os desafios do momento, as propostas da vida naquele aqui e agora, vou mais fundo, ausculto, sinto, percepciono as posturas, os suspiros, leio as consciências, nos corpos em expressão. Silencio. Verifico se algum dos alunos ficou lá fora, embora o corpo esteja já na sala. Saúdo-os, cumprimento-os individualmente, permito que a sua presença se faça. Eis a chamada, não de números, mas de consciências.
Partimos para o aquecimento específico ou inespecífico, conforme as necessidades percepcionadas, em brainstorming. O aquecimento é fundamental para a consecução da aula. Como se articularam os conteúdos da última sessão? Foram amadurecidos, vivenciados fora do espaço da aula, reflectidos, sentidos, esquecidos? Não julgo, aceito as repostas dos meus espelhos, registo no meu caderno de notas as várias vivências e sensações. Entro de novo na sala de aula, refresco os sentidos, apago no meu quadro mental qualquer impressão bloqueadora de contacto genuíno. Não me ponho em causa, se registo desequilíbrios entre supostas expectativas e realizações. Estou confiante neles, no seu potencial criativo, porque confio nas minhas opções, autêntica e inteira na interacção. Surge alguém que me pede para sair mais cedo. Entrego a consideração ao grupo, para pensar nas vantagens e desvantagens dessa intenção, negociamos, até as duas partes do espelho se sentirem confortáveis, tranquilas, sem embaciamentos.
Podemos mudar a disposição das mesas, como na aula passada? Pergunta um aluno. De novo a filosofia do diálogo. A intenção agora não é repetir, mas reflectir. Chegados, em conjunto, à conclusão da pertinência estratégica da mudança estrutural da sala, para melhor articular sujeitos e objectos temáticos, desfaz-se a ordem. A sala deixa de ser rectangular. O círculo une, permite que os olhares se toquem, a observação e a interacção se impregnem de novas atitudes e valores. Perde-se o contacto apenas das costas e das nucas. Ganha-se o corpo da cabeça ao ventre. Mais tarde recuperaremos o corpo na totalidade. Para já começamos com o verbo, a palavra, até atingirmos o não verbo consciente. Agora, em círculo, a afectividade tem mais espaço para se distender.
Ainda há um reflexo de mim, num aluno, que permanece em estratégia de evitamento ao contacto grupal. Olha inevitavelmente para o telemóvel, arrebatado pela informação que chega, em surdina, ao seu pequeno visor. Cabeça baixa. Recordo-me de outras estratégias de evitamento trabalhadas em oficinas de formação contínua de professores: mochila às costas durante toda a aula, headfones colados às orelhas, telemóveis em várias partes do corpo, golas subidas a bloquearem a boca, o sono a invadir as células, o corpo armadilhado contra qualquer tipo de comunicação. Recordei os conselhos que dava aos docentes de utilizarem o princípio de ISO, utilizado na musicoterapia, nos fenómenos autistas. Recorrer ao princípio isomórfico, implica partir de um esvaziamento de preconceitos ou pré-julgamentos e resgatar o imaginário. Sair do seu mundo e colocar-se no lugar do outro, à maneira moreniana. Para se ultrapassar a incomunicabilidade dos mundos, há que se desenhar um programa de leitura. Mas leitura de quê? Das características dos alunos, das suas t-shirts, dos seus interesses, das suas músicas preferidas, dos seus assuntos de eleição. Valorizar, adentrar no seu mundo. Ser o seu mundo e partir daí, isomorficamente. Perder os complexos de superioridade ou de inferioridade e contactar genuinamente. Essa auscultação permitirá construir pontes de acesso relacionais. Fugi do presente, nas minhas conjecturas. Hoje o tempo é tão célere, que não estar no presente pode acarretar grandes perdas. Retomo-me. Entro de novo na sala, ou seja no meu interior, para aceder ao interior dos alunos. Ausculto os corpos, as tremuras dos pés, algum sinal de impaciência nos alunos. Leio-os. Dizem-me que é preciso libertar a expressão, soltar a voz que trará o resto do corpo para o palco dos conteúdos.
Como te sentes? Interpelo aquela parte de mim hipnotizada pelo telemóvel. Escuto a resposta, aproveito para promover algum aspecto daquela personagem. Recordo, naturalmente, o contrato pedagógico que fizemos no início do ano, sobre o uso dos telemóveis. Elevo-o, dou-lhe o protagonismo por alguns momentos; o sentir trá-lo para o presente. Não quer decepcionar o elogio, apronta-se para as tarefas grupais. Invade-o uma pequena vontade. O seu sentir é aproveitado para se dar um salto quântico para o conteúdo que estamos a trabalhar. Também a personagem do livro se sentiu assim. Mais uma vez se constroem pontes, agora entre a realidade e a ficção. As personagens encontram-se.
Os conteúdos de todas as disciplinas podem realmente ser vivenciados, ensinou-me a experiência de formação de professores, ao nível multidisciplinar. A vida toma o lugar da frente na plateia da aula, mesclada de sensações. Agora, no palco, vão decorrer vivências de conteúdos. Vai haver movimentos espontâneos, o corpo vai sair de qualquer ameaça de torpor, de espectador mal sentado. O movimento associa-se à motivação. Vamos em conjunto pôr em cena, no centro da sala, num espaço bem delimitado para a representação de papéis, uma das problemáticas do livro, escolhidas pelos alunos. Vamos convidar o potencial criador dos intervenientes a se assumir, de corpo inteiro. Os que fazem de público, sentados em forma circular, estão igualmente activos, percebem o impacto que as cenas têm em si, em termos corporais, emocionais e mentais. Já tiveram formação para reterem os sentidos que lhes fazem sentido. Em qualquer momento, são interpelados para entrarem em cena…Há vários tipos de inteligência em acção. A linguística, por exemplo, com o aluno que toma notas sobre a aula, a intrapessoal, pela escuta activa de cada participante, a interpessoal, na gestão de conflitos em cena, a cinestésica-corporal, pelas mensagens não verbais, às quais o público está atento, a musical, escolhida pelos alunos como estratégia de fundo…
Antes do toque para a saída, em círculo, cada participante expressa, em retroacção, o que aprendeu naquela sessão, o que consciencializou, o que sentiu, o que vivenciou de corpo inteiro. Alguém comenta: “sempre que a matéria passa pelo corpo, nunca mais se esquece…”
Entramos de novo na sala de aula, renovados, espantados de sermos um corpo só, em redescoberta permanente de que somos parte uns dos outros, recriando-nos e recriando o mundo…
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que belo artigo é pena no entanto que não ponham o nome da autora, pois tenho certeza que ela ficaria feliz de saber que chega a mais corações.
ResponderEliminarTalvez por o nome da professora que escreveu este artigo e que tem dedicado toda a sua vida ao ensino e ao trabalho do corpo na sala de aula. que acham??